É um traço característico do comportamento humano: todo grupo de amigos, cedo ou tarde, sente a necessidade de ter um ponto de encontro oficial da galera. Cada clubinho precisa de sua própria “casa na árvore” para se reunir de vez em quando.
Porém, estabelecer conexão com um ambiente a ponto de considerá-lo “sua cara”, seu habitat natural, só é algo possível através da representatividade, ou seja, quando o contexto que envolve esse espaço combina com os valores de quem o frequenta.
É aí onde entra a controversa figura do bar; antro de perdição para uns, solo sagrado para outros. O fato é que a entidade “Botequim” desempenha um papel relevante no jogo da sociedade: ser a válvula de escape emocional do cidadão médio.
Alguns bares se tornam lendários em suas cidades, figurando para sempre como ícones de uma época. Mesmo décadas após terem encerrado as atividades, sua fama ainda permeia o imaginário coletivo local despertando curiosidade e saudosismo. Atingem o status de patrimônios imateriais, monumentos tombados históricos na memória de várias gerações.
Diferentemente dos estabelecimentos de hoje em dia, que objetivamente são apenas negócios, alguns bares antigos do Crato (município do Cariri, região sul do Ceará) destacavam-se dos demais devido à personalidade latente que exalavam. Eram lugares com alma, ao mesmo tempo em que eram a alma do lugar.
Para ilustrar melhor esse assunto e enriquecer a conversa, abordaremos aqui três bares cratenses antológicos, tão peculiares que se existisse um almanaque de subculturas regionais eles transcenderiam da categoria “cenário” diretamente para a lista de personagens principais. São eles: “Xá de flor”, “O rosto” e “Cabeça de cavalo”.
“Xá de flor”
O bar “Xá de flor” é um dos mais folclóricos do nosso passado recente, uma das referências máximas da cena alternativa do Cariri nos anos 1980/1990. Recebeu esse nome em homenagem a bebida da casa mais aclamada pelo público, a pérola do seu cardápio, a misteriosa aguardente saborizada chamada “Xá de flor”.
Do preparo das cachaças artesanais ao clima tropicalista, tudo fazia parte da concepção criativa de Blandino, proprietário, administrador e inquilino do Xá de flor durante 25 anos. O ambiente instigava bons debates e os momentos de descontração pairavam no ar circulando nas rodas das turmas. Era onde os sentidos e os estímulos conviviam em harmonia.
Eventualmente, uma performance cênica, musical, coreográfica ou literária acontecia improvisada logo ali na mesa ao lado. A clientela habitual dividia-se entre talentos da terra e apreciadores das artes & etílicos, uma combinação triplamente maravilhosa
De acordo com o artigo intitulado “Bar Xá de flor: experiências queer no interior do Ceará”, escrito em 2017 por Roberto Marques, Doutor em Antropologia Cultural pela UFRJ, o bar possuía um clima de vanguarda.
“Em 1994, era comum ir ao Xá de Flor para beber cachaças temperadas, jantar ou dançar animadamente ao som de músicas do psicodelismo nordestino de Zé Ramalho, Alceu Valença e Elba Ramalho em início de carreira. , convite à experimentação, convívio de diferenças e urbanidade, cuidadosamente equacionado com um ar brejeiro”, afirma o pesquisador.
De repente, lá pelas tantas da madrugada, era comum ver o anfitrião Blandino passeando entre os clientes com seu incensório cuspindo fumaça. Sempre que ele sentia a energia do entorno pesada, se punha a defumar ritualisticamente os quatro cantos do perímetro para afugentar as más vibrações.
O bar “Xá de flor” foi nomeado assim por causa da bebida “Xá de flor”. Mas de onde veio originalmente a expressão “Xá de flor”?
Em entrevista ao “Jornal Sertão Transviado – 4ª edição”, em 2016, Blandino explica que nos anos 1970 ele fazia parte da produção de uma banda de rock fortalezense intitulada “Chá de flor”. O vocalista era João do Crato. Alguns anos à frente, quando Blandino passou a produzir e comercializar sua própria cachaça, decidiu batizar a mistura em homenagem ao amigo.
“Cachaça é do lado de papai, papai nasceu e se criou em alambique. Erva é do lado de mamãe, que era camponesa”, complementa Blandino, sobre a origem das suas habilidades.
“O Rosto”
Esse bar exercia um fascínio especial na juventude do Cariri anos 80/90/00, pois como ficava praticamente no meio dos matos adquiriu um viés de “jardim secreto”. Situado nas entranhas sinuosas do longínquo bairro Lameiro, zona limite entre o Crato e a Chapada do Araripe, na sexta-feira à noite “o rosto” se apresentava como lugar ideal para quem queria “tirar a cara”.
José Nilton de Figueiredo, antigo frequentador do lugar, escreveu em 2014 no site Blog do Crato o seguinte depoimento:
“Ficava entre o Riacho do Padre e a Cascata. Naquele turbilhão de sons, de caras e bocas, ajuntamento de toda a nação cariri, na loucura das tribos quando se encontravam para festejar a vida (…) era um tremendo fuá. O território mais democrático de “Craterdan”. Era um surto de possibilidades. Local das mais inusitadas realizações. O paraíso abençoado por Deus e desvairado por natureza. Mas tudo dentro da ética, ou melhor, da bioética.”
Por curtir um estilo mais “guitarra, baixo e bateria” do que “triângulo, zabumba e pandeiro”, não tardou até que o bar d’o rosto se consolidasse como um oásis exótico no cenário local, um vislumbre notívago de contracultura mesclando carpe diem com pitadas de fugere urbem.
O responsável por reger esse microcosmo sabor “escapismo” era Wilson ‘do rosto’. Fosse servindo as doses ou participando dos brindes, Wilson sempre recebia bem suas visitas e deixava o pessoal à vontade. Entre vinhos e cervejas o acaso nosso de cada dia aflorava em todas as direções, perfumando o fino tecido da realidade.
“O rosto” permanece na ativa até hoje, porém há anos atua sob uma proposta mais convencional: escolheu guardar o já consagrado passado underground com carinho em um porta-joias e se reinventar mais uma vez. Literalmente, migrou o bar das entocas para a beira da pista assumindo uma versão “quiosque/mercearia” de si mesmo.
“Cabeça de cavalo”
Mais ou menos entre 2010 e 2015, sem datas exatas, o Cabeça de Cavalo foi o respiro social de muita gente. O refúgio dos cratenses que só queriam se divertir num sábado à noite sem precisar atravessar os sete mares da Avenida Padre Cícero em direção ao Juazeiro do Norte.
“Bar e tabacaria, artesanato e terra da magia”, dizia o subtítulo do letreiro afixado acima da porta de entrada do “Cabeça de cavalo”, derradeiro reduto essencialmente boêmio do Crato contemporâneo.
A maioria dos empreendimentos se esquiva do rótulo de “lugar de doidão” porque financeiramente é prejudicial, já que espanta o “cidadão de bem” (consumidor, em geral, com maior poder aquisitivo). O diferencial do Cabeça de cavalo foi justamente ter abraçado o “lado B” com todas as forças.
O “Cabeça” era um tipo peculiar de bar, pois não se pautava pelas tendências do mercado: não articulava festas temáticas, não promovia voz e violão nem discotecagem, não cobrava ingresso nem couvert, não tinha serviço de cozinha nem garçons. Para ser sincero, o “Cabeça” mal tinha copos (somente para destilados).
A dinâmica padrão era a seguinte: o cliente ia até o balcão, se acotovelava com mais quarenta pessoas até conseguir comprar uma cerveja de 330ml, bebia diretamente na boca da garrafa lá fora sentado na muretinha do canal do rio Grangeiro ou encostado em algum carro estacionado. Ao terminar, bastava fazer o descarte do casco de vidro no enorme tonel de lixo que repousava na esquina. Mais prático, impossível.
A pitoresca estética do bar envolvia ter as paredes cobertas de cima a baixo por quinquilharias e cacarecos de toda espécie, o que deixava o bar com o aspecto de museu de grandes gambiarras. Um ateliê do pós-apocalipse, onde Quentin Tarantino se sentiria em casa para gravar uma tomada. Vale ressaltar que graças a ironia do destino, o “Cabeça” ficava praticamente ao lado da igreja de Nossa Senhora de Fátima.
A dinâmica padrão era a seguinte: o cliente ia até o balcão, se acotovelava com mais quarenta pessoas até conseguir comprar uma cerveja de 330 mL, bebia diretamente na boca da garrafa lá fora sentado na muretinha do canal do rio Grangeiro ou encostado em algum carro estacionado. Ao terminar, bastava fazer o descarte do casco de vidro no enorme tonel de lixo que repousava na esquina. Mais prático, impossível.
“E vem aquele velho ditado: SÓ NO CRATO MESMO! Depois do sucesso de alguns bares que fizeram história aqui na região, tais como: Xá de flor, Tragos Largos, Lua Nua, Chaminé, Olhar – casa das artes, Flor do Pequi, Navegarte, Arranha Céu, Café Estação, O Rosto, e tantos outros, eis que surge: o Cabeça! Lugarzinho aconchegante, música boa onde predomina o reggae, decoração criativa, quase surreal, onde quadros são fixados no teto, chifres, velas, incensos e correntes do tempo da escravidão” ; relatou Janinha Brito no site Cultura no Cariri, em 2013.
O cérebro que articulava as ações do Cabeça era Ricardo “Joca boy”. De coração grande e paciência pequena, o bom humor esculhambado do proprietário era um dos ingredientes da receita do sucesso. Como possuía outras fontes de renda, encarava o bar como um hobby. Isso lhe dava carta branca para conduzir as atividades sem se preocupar com engajamento, audiência ou coisas do tipo.
“Falar que o lugar é um bar descolado, cool e ‘diferentão’ é pouco. Afinal, ninguém espera ser trancado dentro do estabelecimento nos momentos em que o dono resolve que o movimento está muito intenso e complicado de se trabalhar. Ou que o mesmo solte bombas de São João para animar a rapaziada. Excentricidades que fazem o Cabeça de Cavalo o point mais procurado pelos que estão a fim de espantar os barzinhos “bem comportados”. Ah, mas se chegar ao Crato em busca do local, certifique-se que Ricardo anda pelas redondezas. Ele costuma tirar férias de 30 em 30 dias e o Cabeça de cavalo junto com ele”
Publicou a CARIRI REVISTA, em sua edição nº 8 (outubro de 2012).
Nenhum comentário:
Postar um comentário