– Lembro. Tinha um cartão branco com vermelho, com uma menininha na frente, que ficava na pasta de documentos lá de casa. Mas naquela época as vacinas davam menos efeitos colaterais, né?
A resposta recobra uma lembrança dos anos 1990, quando a advogada Carol*, de 32 anos, nasceu. Naquela década, o emblemático cartão de vacinação era atualizado e guardado a rigor pela mãe – processo que Carol não repete com a filha de 7 meses. Por “não querer ser julgada”, ela pediu que o nome verdadeiro não fosse divulgado aqui.
A justificativa para não vacinar a primogênita contra doenças como influenza e Covid é o medo de efeitos adversos, o mesmo de um a cada 4 brasileiros que deixaram de imunizar a si ou a uma criança sob seus cuidados.
O dado é de uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e da Avaaz, que ouviu 2 mil jovens e adultos em 2019, pré-pandemia, e reflete um comportamento que fez as taxas de cobertura vacinal despencarem no Brasil e no Ceará: a hesitação vacinal.
dos brasileiros já eram hesitantes em relação às vacinas em 2019, segundo pesquisa da SBIm.
O problema seguiu pós-pandemia. Outro estudo, de 2022, também atestou que 43,2% das barreiras que impedem as famílias brasileiras de vacinarem crianças de até 5 anos são comportamentais, incluindo o medo dos efeitos adversos, a falta de confiança no imunizante e até a "pena" dos filhos.
O levantamento, disponível no Repositório da UFC, integra a dissertação de mestrado de Luciana Rêgo dos Santos, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), feito a partir da leitura de 13 artigos científicos sobre hesitação vacinal, publicados entre 2015 e 2021.
Esta é a 1ª reportagem da série especial “Imune ao medo”, que traz um retrato da imunização no Ceará, da efvolução das coberturas vacinais, dos motivos que interferem no alcance das taxas – e das estratégias possíveis para retomar a proteção da saúde pública.
A queda na busca pelas vacinas do Plano Nacional de Imunização (PNI) no Ceará e no Brasil ficou visível em 2019, como mostram dados do Ministério da Saúde (MS), mas se acentuou nos anos seguintes – reflexo direto da pandemia de Covid, como apontam especialistas.
Além das barreiras comportamentais, 27% dos empecilhos à vacinação de crianças até 2021 eram estruturais, como falta de vacinas ou de acesso aos postos. O restante são barreiras de informação (13,5%) ou outras limitações (16,2%), segundo o estudo da pesquisadora da UFC.
O impacto é expresso em números. A cobertura vacinal estadual da BCG – que protege contra tuberculose e deve ser aplicada nos primeiros dias de vida – caiu de 104,9% em 2018 para 86,1% no ano seguinte, finalizando 2019 abaixo da meta de 90% estipulada pelas autoridades de saúde.
Já a taxa de proteção contra hepatite B, imunizante também aplicado ao nascer, conforme o PNI, caiu de 107,8% para 80%, percentuais que reduzem ainda mais se considerada a dose de reforço.
A hesitação vacinal consiste no “atraso ou recusa em receber as vacinas recomendadas, apesar da disponibilidade nos serviços de saúde públicos ou privados”, como define Robério Leite, médico infectologista pediátrico e representante de Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) no Ceará.
O especialista, referência na área, aponta que esse fenômeno “vem ganhando corpo no mundo inteiro, com muitas vertentes”, e em 2019 foi elencado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) entre as 10 principais ameaças à saúde pública neste início de século.
Somente de 2023 para cá, através de intensificação de ações para enfrentamento desse problema, iniciamos uma tendência de reversão, com alguma melhora nos indicadores.
No Ceará, a resistência às vacinas tem impactado “de maneira expressiva”, refletindo, segundo o infectologista, no retorno de doenças que já haviam sido controladas, como sarampo e coqueluche.
A presença da hesitação vacinal se intensificou com a campanha de imunização contra a Covid-19, em 2021, cuja recusa de parte da população se deu “principalmente por preocupações de segurança, efeitos adversos, e porque alguns percebiam que a vacina talvez não tivesse importância pra crianças”.
A análise é da imunologista Daniella Moore, pesquisadora clínica do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Ela destaca que “existia confusão a respeito da vacina”, já que “algumas pessoas tinham incorporado informações equivocadas vindas de fake news em redes sociais”.
"Sem dúvidas, com a pandemia, tivemos uma hesitação potencializada, porque infelizmente a vacinação entrou numa polarização política. E isso afetou grandemente: houve uma piora. Agora, começamos a ter de novo um ganho nas coberturas", adiciona.
Fonte: Diário do Nordeste
Nenhum comentário:
Postar um comentário